Tendo em conta o papel fundamental da Ciência na Medicina torna-se indispensável, ao aluno de Medicina, estar familiarizado com o Método Científico. Este conhecimento é essencial ao desenvolvimento de uma atitude crítica na avaliação da ciência tal como lhe é apresentada.
O termo "Método" refere-se a um processo ordenado e padronizado
de execução de uma determinada actividade e, no presente contexto,
implica um conjunto de regras que especificam o modo como o conhecimento deve
ser adquirido e apresentado e o modo de avaliação da verdade ou
falsidade do mesmo.
Antes de iniciar a discussão sobre o Método Científico
será útil, a título de contraste, descrever sumariamente
outros métodos de conhecimento usados em Medicina:
1. Autoridade: de acordo com este método, o conhecimento é considerado verdadeiro tendo em conta a tradição e/ou a opinião de clínicos distintos e experientes. Este é um método muito usado e útil, por exemplo, durante o período de aprendizagem de um Médico. Tem, no entanto, inúmeros problemas. É baseado em opiniões pessoais e, muitas vezes, subjectivas; não tem em conta as posições de outros profissionais distintos e experientes que podem, mesmo, ser contraditórias; resguarda-se, muitas vezes, na tradição sem ter em conta a evidência empírica e objectiva.
2. Racionalismo: a razão e a lógica são usadas para avaliar a verdade do conhecimento. Claramente, a limitação da lógica formal é que só funciona na prática se tivermos os meios para estabelecer a verdade factual das premissas de onde o raciocínio parte. É evidente que a lógica e a matemática são fundamentais à ciência, no entanto, para além destas, é necessário uma forte base de evidência empírica, não sendo suficiente o simples raciocínio lógico.
3. Intuição: o conhecimento surge, por vezes, através de um súbito e inesperado "insight", na ausência de raciocínio consciente. A verdade é julgada pela claridade da experiência e pelo seu conteúdo emocional (a experiência da "Eureka!"). Lamentavelmente, mesmo as mais fortes intuições podem revelar-se falsas quando postas perante a prova empírica. A intuição é, por vezes, um momento de grande brilhantismo mas um método muito pouco fiável a longo prazo.
Autoridade, lógica e intuição têm todos o seu devido lugar na prática médica, porém, o Método Científico tem grandes vantagens sobre eles. De um modo geral, o método científico contrasta com esses outros métodos pela ênfase que dá à necessidade da evidência empírica.
O método
Científico evoluiu ao longo de vários séculos, concomitantemente
com o crescimento da própria investigação científica.
As origens da Moderna Ciência Ocidental remontam à Europa do século
XVI, um tempo marcado por profundas mudanças sociais, económicas
e culturais. Essas mudanças permitiram, então, que filósofos
como Descartes e Francis Bacon desafiassem os dogmas do pensamento medieval,
e que cientistas como Galileu, Newton e Harvey propusessem novos modelos e teorias
de explicação do real. Os métodos utilizados por esses
pensadores e cientistas tinham três ideias elementares que constituem
a base do Método Científico.
O
cepticismo, isto é, a noção de que qualquer proposição
ou afirmação, mesmo quando proferida por grandes autoridades,
está sujeita à dúvida e à análise;
O determinismo,
ou seja, a noção de que a realidade está dependente de
leis e causas regulares e constantes e não dos caprichos ou desejos dos
"demónios" ou "bruxas";
e o empirismo segundo o qual a investigação científica
deve ser conduzida pela observação e verificação
através da experiência.
A indução é uma outra noção chave,
provavelmente a mais importante e controversa, do Método Científico
e será focada mais adiante.O
indutivismo é, geralmente, atribuído a Francis Bacon (no seu livro
Novum Organum de 1620), apesar de haver, antes deste, outros filósofos
que se aproximam dessa ideia.
O Método
Científico está representado de modo simplificado e esquemático
na figura 1.
Observação,
descrição e medição:
A descrição
dos fenómenos naturais, envolvendo o registo preciso e válido
de observações sobre pessoas, objectos ou acontecimentos, constitui
a base empírica de todos os ramos da Ciência. As observações
podem ser na forma de descrições nominais ou conjuntos de medições.
As percepções pessoais e subjectivas têm que dar lugar às
formulações descritivas e medições que possam ser
entendidas e replicadas por outros investigadores. Muitos dos avanços
da Ciência, ao longo dos últimos séculos, devem-se directamente
ao desenvolvimento de instrumentos de auxílio à observação
cada vez mais potentes. Não deve ser esquecido, no entanto, que o uso
de instrumentação complexa não é indispensável
à realização de observações científicas.
As características essenciais para uma observação poder
ser considerada científica são a precisão, validade e reprodutibilidade.
As observações, quando adequadamente sintetizadas e confirmadas
por outros, constituem a base factual, empírica, do conhecimento científico.
Generalização
e Indução:
Afirmações
e medições representando observações são
integradas em sistemas interpretativos designados Hipóteses e Teorias.
A lógica subjacente à generalização inerente ao
método científico é designada Indução. A
indução permite o estabelecimento de proposições
gerais sobre uma classe de fenómenos com base na análise de um
número limitado de observações de elementos seleccionados.
Por exemplo, tendo verificado que a penicilina é útil na cura
da pneumonia num número limitado de doentes, propõe-se a generalização
- "A administração de penicilina cura a pneumonia (em todos os
doentes)".
Hipóteses:
A proposição
"A administração de penicilina cura a pneumonia" é uma
hipótese. Hipóteses científicas são proposições
que especificam a natureza da relação entre dois ou mais conjuntos
de observações. No exemplo exposto, o primeiro conjunto de observações
relaciona-se com a administração de penicilina, e o segundo, relaciona-se
com as modificações das observações ou medições
do estado clínico dos doentes no que se refere à pneumonia. Uma
hipótese científica deve ser apresentada usando referências
claras e observáveis, não podendo depender de interpretações
subjectivas.
Teorias:
Teorias científicas
são, essencialmente, conjecturas que representam o nosso actual estado
de conhecimento sobre o mundo real. As hipóteses são integradas
em sistemas interpretativos mais abrangentes, designados teorias. A teoria tenta
explicar as relações existentes entre diversos tipos de observações
e hipóteses. Por exemplo, uma teoria que pretenda explicar porque certos
fármacos designados antibióticos são eficazes na cura de
certas doenças infecciosas terá que integrar evidências
de variadas fontes, tais como a microbiologia, a farmacologia, a fisiologia
celular e a medicina clínica. Outros exemplos de teorias são a
teoria heliocêntrica do sistema solar, a teoria genética da hereditariedade
baseada no DNA e a teoria neuronal de organização do sistema nervoso
central. Algumas teorias estão ligadas ou podem ser representadas por
um modelo, que é uma representação matemática ou
física da própria teoria. Deste modo, as teorias identificam as
causas dos acontecimentos, e proporcionam meios conceptuais de predição
e influência sobre esses mesmos acontecimentos.
Dedução:
As teorias científicas devem levar à formulação
de um conjunto de proposições empiricamente verificáveis,
ou seja, hipóteses. As hipóteses são deduzidas, obedecendo
à lógica formal, das proposições e/ou modelos matemáticos
que especificam a relação causal postulada pela teoria. Por exemplo,
se aceitarmos a teoria de que um conjunto de neurónios, anatomicamente
adjacentes, do lobo occipital são responsáveis pela visão
nos seres humanos, então, a hipótese que pode ser deduzida é
a de que a activação desses neurónios (por exemplo, através
de estimulação por eléctrodos) provocará o aparecimento
de certas sensações visuais. O teste das hipóteses através
da observação deve ser levada a cabo, preferencialmente, em condições
controladas. A observação deve ser controlada de modo a permitir
o afastamento de hipóteses alternativas na explicação dos
fenómenos sobre os quais se fez a predição. Por exemplo,
se quisermos demonstrar que a estimulação do lobo occipital provoca
sensações visuais, temos que mostrar que estamos a controlar a
observação para outro tipo de estimulação cerebral
que possa estar a provocar tais sensações. Inversamente, teríamos,
também, que demonstrar que a estimulação do lobo occipital
não leva a uma série de outras sensações que não
as visuais.
Verificação
e falsificação:
Depois da evidência ter sido colhida, o investigador decide se os achados
são consistentes ou não com as predições da hipótese.
Se a hipótese é confirmada pela evidência, então,
a teoria de onde proveio a hipótese é fortalecida ou verificada.
Porém, quando os dados não confirmam a hipótese, a teoria
subjacente é falsificada. Se uma teoria não continua a conseguir
predizer ou explicar as observações torna-se menos útil,
e é normalmente substituída por novas teorias mais fortes e consistentes.
Assim, as teorias científicas não devem ser entendidas como verdades
absolutas e finais, mas meras explicações provisórias da
evidência existente até ao momento.
Foi a aplicação do processo acima descrito que permitiu o espectacular crescimento do conhecimento científico a que temos assistido nos últimos séculos e, em especial, nos últimos cem anos. É desta forma que o método científico contribui para a concretização dos nossos objectivos, ajudando-nos a descrever, explicar, predizer e, por vezes, controlar o mundo em que vivemos.